Muriel Magalhães | Histórias que Inspiram #02
“Eu queria trabalhar com pessoas, ter estabilidade financeira e morar no interior, em um lugar tranquilo e perto da natureza.”
Uma vez por mês, eu compartilho histórias inspiradoras de profissionais que se reinventaram na carreira. Seja mudando de atividade, criando um projeto paralelo, ou trabalhando em uma nova carreira, sempre em busca de uma vida equilibrada e com significado. Pegue sua xícara de café e boa leitura!
Quando eu decidi criar este espaço para contar histórias de mulheres que têm mais de uma carreira profissional ou que fizeram transições de carreiras ao longo da vida, eu sabia que seria algo inspirador. Mas a edição de hoje, a segunda do Histórias que Inspiram, retrata a trajetória da Muriel Magalhães, idealizadora do Restaura, uma empresa que apoia pessoas, comunidades e sistemas a cultivar diálogos conscientes, compassivos e assertivos. Ela deixou a advocacia para trabalhar com facilitação de experiências. Hoje, ela atua como facilitadora de comunicação não violenta, círculos restaurativos, com ênfase na metodologia círculos de construção de paz.
Aos 34 anos, Muriel mora em Lumiar, um distrito de Nova Friburgo, no Rio de Janeiro, com cinco mil habitantes. A escolha do lugar, junto com seu trabalho no Restaura, abrange dois componentes de um tripé que ela definiu para sua vida ao escolher o curso na graduação: “eu queria trabalhar com pessoas, ter estabilidade financeira e morar no interior, em um lugar tranquilo e perto da natureza.”
Na entrevista, nós revisitamos os últimos 15 anos da vida da Muriel, desde a decisão pelo curso de Direito na faculdade, passando pela temporada em Florianópolis, a descoberta da Justiça Restaurativa, até os dias de hoje, onde ela busca novas formas de polinizar grupos por meio de diferentes metodologias.
→ Como foi sua escolha de carreira?
Eu estava na fase desafiadora da escola, terminei o Ensino Médio e não tive a oportunidade de tirar um ano sabático para escolher o que estudar. Eu precisava fazer vestibular e não sabia ao certo qual curso escolher. Tinham três coisas certas na minha vida e que são presentes até hoje: trabalhar com pessoas, apoiá-las em suas necessidades, ter estabilidade financeira para não passar o que minha mãe viveu quando eu era criança, e morar no interior, um lugar tranquilo e cercado de verde.
A gente tem uma crença na sociedade de que vamos conseguir morar no interior quando se aposentar. Eu não queria isso pra mim, ter que esperar a aposentadoria para morar perto da natureza.
A escolha pelo Direito vem muito nesse sentido de poder ajudar as pessoas e ter estabilidade financeira porque era só fazer um concurso público que estaria segura e poderia escolher onde queria morar. Era perfeito! Além disso, o Direito era também um caminho para a solução de conflitos que tanto me incomodavam e estavam tão presentes na minha vida, na vida da minha família.
→ Então seus pais tiveram alguma influência para você escolher o Direito?
Total!! A minha mãe foi um pouco menos porque ela sempre confiava na minha decisão. Mas o meu pai é muito tradicional, então eu acho que fui para o Direito para poder fazer o que quero, mas também atender as expectativas das pessoas.
Mas a adolescência é uma fase complicada, de construção. Eu não tinha muita noção das coisas, não estava muito conectada com a minha autenticidade. Estava em um processo de descobrir quem era a Muriel em todas as histórias e experiências que vivia.
→ Você passou no vestibular no Rio, na faculdade Cândido Mendes. Como foi esse início do curso e suas descobertas?
Entrei na faculdade em 2007 aos 18 anos. Eu parecia e me sentia um ET nas aulas. Tinha recém tirado os dreads do cabelo, ia para a aula de sandália, eu não me via lá. Até que um dia eu li uma reportagem no jornal O Globo do desembargador aí do Rio Grande do Sul, o Hamilton Bueno de Carvalho, em que ele falava sobre o Direito Alternativo, onde a proposta é ter uma visão mais social da justiça. Eu disse: “é isso que eu quero fazer.”
Na semana seguinte, entrei no elevador da faculdade e tinha um panfleto com o anúncio de uma palestra sobre o Direito Alternativo. “É um sinal”, eu pensei. Fui falar com a coordenação do curso e não era um evento para assistir, mas sim para os alunos realizarem a palestra. E eu fui a única da minha faculdade que participou. Fiz a palestra na OAB do Rio e foi incrível! Tudo começou a acontecer a partir dessa palestra!
Nessa época eu conheci o João Luiz Duboc Pinaud, um professor da minha universidade da área de Direitos Humanos. Ele não era meu professor, mas sempre apoiou meu aprendizado, era como um mentor.
Um dia, ele chegou pra mim e disse que eu tinha que estudar no Sul, que meu lugar não era no Rio. Lembro que ele disse que eu tinha uma visão muito social, uma veia muito progressista e por isso tinha que estudar no Sul. Ele deu o e-mail do dono do CESUSC (Complexo de Ensino Superior de Santa Catarina) e pediu para entrar em contato. O não eu já tinha, né? Que mal faria eu tentar?
O próprio dono da faculdade respondeu meu e-mail e, em 2009, estava mudando para Florianópolis. Fiz o restante do curso de Direito em Santa Catarina. Imagina que a minha vida estava toda estruturada no Rio, eu namorava, estagiava na Defensoria Pública em São Gonçalo, estava tudo bonitinho, organizadinho. Aí rolou essa bolsa e eu não podia recusar.
→ Como foi essa mudança para o Sul?
Eu cheguei em uma semana de um frio que eu nunca tinha sentido (risos). Nunca tinha ido para o Sul. Mas fui me adaptando na cidade, na faculdade. E, logo que as aulas começaram, eu conheci o modelo de Justiça Restaurativa. Foi ali que me encontrei, que entendi que é isso que significa fazer justiça. É você ouvir as pessoas. Tive a certeza que era com isso que eu queria trabalhar.
A Justiça Restaurativa foi um portal que transformou a minha visão em relação à transformação de conflitos.
Nesse modelo, a justiça dá protagonismo para as pessoas resolverem seus conflitos. Eu nunca entendi essa questão de terceirizar para uma pessoa resolver sobre a guarda de uma criança, por exemplo. Ou sobre qual o valor da pensão que deve ser pago. Essa coisa de não integrar a comunidade, não integrar a família para decidir o futuro de uma criança, de um adolescente, não faz sentido pra mim.
No Brasil, estamos muito atrasados nesse formato de justiça e o foco ainda é nas escolas. O Rio Grande do Sul é uma super referência nessa questão da educação. No nosso país, a cultura da justiça é de punir o ofensor. Os projetos ainda são poucos, mas a sementinha está sendo plantada devagarinho. Atualmente, o CNJ (Conselho Nacional de Justiça) está retomando algumas ações no âmbito escolar.
→ Nessa época, a Muriel que foi para Florianópolis conseguia enxergar o Direito com outros olhos?
Super! Porque eu vi que era possível atuar nessa nova prática da justiça, a Restaurativa. Mergulhei fundo para entender o tema, estudar e descobrir tudo que tinha disponível. Apesar de todos os desafios de fazer faculdade em outro estado, longe da família e dos amigos, sem rede de apoio, eu comecei a ter pistas do que eu queria fazer. Nessa época, eu também me aprofundei na área acadêmica, apresentei muitos trabalhos científicos, produzi artigos e estagiei em diversas instituições.
Nesse período, eu tive o primeiro contato com a facilitação sem saber que era facilitação. Fui fazer um trabalho de estágio para o Instituto Padre Antônio Vieira, que tinha uma casa de medida socioeducativa para jovens no regime semi-aberto. Eu fazia uma roda de diálogos com esses jovens e foi a minha primeira experiência em facilitações de conversas. A ideia do círculo é facilitar diálogos, conversas que podem ser difíceis.
→ É nessa fase que você começa a se reconhecer no papel atual de facilitadora?
Sim, foi aqui que eu comecei a entender o que eu queria fazer, mas ainda sem saber muito como. Nunca me vi como facilitadora, nem achava que era possível. Fui fazer a formação como Facilitadora de Círculos de Construção de Paz, em Porto Alegre, na AJURIS (Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul). Além disso, fiz duas outras especializações, uma em Direito Ambiental e outra em Processo Penal e Direito Penal.
→ Como fica a Muriel depois da faculdade, com todas as descobertas. Foram oito anos no Sul, e depois?
Eu gosto de dizer que depois desse tempo no Sul veio a minha fase “Fênix”, o retorno de Saturno. Eu estava com 27, 28 anos, meu contrato com o Ministério Público de Santa Catarina terminou, voltei para o Rio e comecei a estudar para concurso público. Mas eu não sabia o que fazer, só sabia que não queria advogar.
Eu chamo essa fase de ”Fênix” porque eu entrei em um momento da minha vida terrível. Eu passava os dias estudando para o concurso e só sai de casa para trabalhar. Essa rotina me levou à depressão, tive crises de ansiedade, compulsão alimentar. Um dia, voltando para Niterói pela ponte (ponte que liga o Rio de Janeiro a Niterói), tive uma crise de ansiedade e achava que o ônibus ia cair da ponte. Foi horrível! Procurei um psiquiatra e voltei a fazer terapia. Nesse momento, comecei a fazer alguns processos e voltei a olhar pra mim.
Eu estava chegando aos 30 anos e não sabia quem eu queria ser. Quem é a Muriel de agora e quem eu quero ser? Eu vi que estava tudo errado.
Nessa fase, começaram a surgir mensagens no meu e-mail para escrever livros sobre Justiça Restaurativa, escrever artigos. Eu achei estranho, pois não tenho Mestrado nessa área, mas eu tenho muita publicação sobre o tema. E não é que comecei a me encontrar de novo na Justiça Restaurativa. Retomei os estudos, estava com muito tesão nesse papel de estudar, de pesquisar, da escrita, tinha saudades de fazer círculos, de estar em grupo.
Mas sabe quando você sente que tem algo que não se encaixa, que não faz sentido? Era algo meu, da minha criação. Percebi que levava comigo crenças da minha família e que não faziam sentido para quem eu queria ser, para o que eu queria fazer. A questão da estabilidade financeira era muito mais um medo da minha mãe não querer que eu passasse por tudo que ela passou, mas não fazia sentido pra mim.
Como eu sempre gostei muito de espiritualidade, pedi para o Universo me dar um sinal, me dar uma luz para onde eu tinha que ir. Foi quando tive um sonho onde apareceu o nome Restaura.
→ Ah, sério? Como foi?
Eu acordei de manhã, elétrica, fui tomar café com a minha mãe e disse que tinha sonhado com o Restaura. Contei que não queria fazer concurso, que não queria mais advogar. Meu sonho, ainda não é possível, mas eu quero que aconteça, é um Centro de Cultura de Paz, para trabalhar com justiça, meditação, e várias propostas para ser um lugar de autoconhecimento e para cuidar das relações.
Eu lembro que a minha mãe questionou se era isso mesmo que eu queria fazer. Eu não tinha dúvidas que era isso que eu queria pra mim.
→ Aí que nasce o Restaura Diálogos?
Sim, e foi aí que o Restaura nasceu, em 2019, antes da pandemia. E como eu ia fazer acontecer, tirar minha ideia do papel? Fui para o Instagram. Pensei que ali era o lugar para voltar a me conectar com as pessoas, voltar a escrever. Eu reconheço o privilégio que tive, pois minha mãe me apoiou e deu o prazo de um ano para fazer o Restaura acontecer.
Foi um momento de muito trabalho, eu precisava aproveitar ao máximo o tempo que a minha mãe tinha me dado. Além disso eu estava muito empolgada com todo esse movimento. Comecei a escrever sobre o tema, a entrar em contato com as pessoas, participar de eventos de Comunicação Não-Violenta. Eu mergulhei nos estudos desses temas e conheci o Dominic Barter, uma referência em Comunicação Não-Violenta no Brasil. Eu queria ter portfólio para o Restaura, as pessoas precisavam saber quem era a Muriel dentro desse tema.
No primeiro ano do Restaura, em 2019, participei de um processo de aceleração de uma startup na Fábrica de Startup Brasil, que era um projeto para apoiar jovens em situação de vulnerabilidade a conseguirem a vaga de jovem aprendiz. Com a pandemia, dentro desse universo de startup, eu percebi que as equipes das organizações se dissolveram, porque as pessoas não conseguiam conversar. Todo mundo é analfabeto emocional. A gente não aprender a falar o que sente, o que é importante pra si.
Foi a partir dessa minha experiência na Fábrica que me convidaram para dar uma palestra sobre Comunicação Não-Violenta e habilidades emocionais. Foi o primeiro movimento do Restaura presencial dentro de empresas.
→ Quais foram seus principais desafios nesses primeiros anos do Restaura?
Para mulher é muito difícil empreender. A gente nasce e entregam uma boneca pra gente cuidar e uma casinha pra limpar. É isso que esperam que a gente faça, cuidar dos outros. A gente tem dificuldade de saber o que ela precisa, o que é importante, quem ela é. Eu adoraria parar um ano para ver o que quero fazer no Restaura e como devo fazer. Mas não dá, então vou fazer o que é possível. Nunca consegui planejar o Restaura como gostaria e deveria e eu vejo muitas mulheres com desafios parecidos com o meu. Elas querem empreender e não sabem como fazer, não têm rede de apoio. Vejo muitas delas presas em um lugar que não faz mais sentido, mas porque não sabem como fazer essa transição.
Esse ato de mudar, de fazer essa transição, é um movimento que exige coragem, por isso eu classifico essa fase de “Fênix”. Eu estava muito infeliz, não me via dentro do sistema judiciário.
A pandemia trouxe algumas questões, entre elas “o que eu quero fazer da minha vida?” Entendi que vida não começa só na aposentadoria, a vida é o agora. Isso pesou muito forte pra mim, eu não preciso esperar para ter o que desejo viver. Felicidade são momentos, não é o futuro que nunca chega.
→ Como é seu trabalho hoje no Restaura?
Hoje, atuo como facilitadora de comunicação não violenta, círculos restaurativos, com ênfase na metodologia círculos de construção de paz. Realizo mentorias terapêuticas para pessoas, equipes e casais. Tem também o Grupo de Prática e Escuta Empática que está indo na 14ª Edição e tem o Clube do Livro que eu adoro, pois a gente trabalha a inteligência coletiva. Também ministro palestras e workshops para empresas e organizações.
→ Podemos dizer que, hoje, no seu trabalho com o Restaura, você voltou à essência da Muriel do passado, você conseguiu encontrar sua autenticidade?
Acho que ela sempre esteve comigo, mas eu não estava enxergando. A minha essência está muito relacionada com a minha criança interior. Hoje, eu consigo escutar o que a Murielzinha tinha para me dizer. Foi um processo de abraçar essa criança que está viva dentro de mim e colocá-la no mundo.
Para conhecer mais sobre o trabalho da Muriel:
💻 Site: https://restauracentro.wixsite.com/restaura
@ Instagram: https://www.instagram.com/restauradialogos/
📧 E-mail: restauradialogos@gmail.com
Gostou da história da Muriel? Encaminha para quem precisa se inspirar para fazer uma transição de carreira ou incluir uma nova carreira no dia a dia.
Se você souber de alguém que tem uma história interessante para contar, responde este e-mail ou escreve pra mim: priscila@pritescaro.com.br
Um beijo e até o próximo mês com mais uma Histórias que Inspiram.
Pri Tescaro
Que história linda de se contar e que escrita gostosa de ler.
Parabéns à vocês duas, mulheres que conheci à pouco e já são pura inspiração para mim e meus facilitados ❤️